A BIBLIOTECA

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LUTCESTER Nº3 - A BIBLIOTECA

Corredores de mármore e granito, grandes passarelas e colunas ornamentais enfeitam os caminhos do Campus, o local onde as aulas são ministradas, e também lar do Reitor e o Instituto Laersany – a casa de toda a sabedoria e poder de Lutcester.

Apenas os estudantes mais esforçados têm o privilégio de frequentar estes corredores e usufruir de suas dependências. O Grande Hall fica localizado no centro do Campus, e é onde as reuniões extraordinárias são feitas, inclusive julgamentos, quando necessários. À esquerda ficam as salas de aulas e laboratórios, e à direita a biblioteca.

Segurando um livro em seu abraço, ela andava com passos rápidos e inquietos, o som de seu caminhar ecoando por todo o pátio e nenhuma outra alma sequer lhe fazendo companhia. Era dia, mas o Campus sempre parecia estar deserto para ela, que não tinha certeza se era sempre barulhenta ao transitar pelo lugar ou se todos eram muito quietos e cuidadosos com o caminhar.

Uma leve brisa quente soprava e seus longos cabelos negros esvoaçavam em sintonia quando ela finalmente chegou à entrada da biblioteca – uma enorme porta dupla de madeira escura, a qual ela abre fazendo um certo esforço.

Lá dentro o esquema de cores não era muito diferente, mas havia o contraste da pedra branca do chão e paredes com as mesas e estantes de madeira escura. A biblioteca era, talvez, maior e mais extensa do que todo o bloco das salas de aula e laboratórios juntos, e ela sempre se sentia perdida por lá.

Como de costume, ela não viu ninguém no ambiente, a não ser a bibliotecária – uma mulher estupidamente alta e esguia, sempre vestida de tons escuros como o preto, o azul marinho e o roxo.

A jovem então caminha até a mesa para entregar o livro que tinha em mãos – “Introdução à Anatomia Humana”. Hoje a bibliotecária, que lançou um olhar por cima dos óculos ovalados, estava com um traje verde escuro. Ela estendeu a mão, fina e delicada, para pegar o livro.

A garota não sabia exatamente o que, mas algo era estranho na mulher. O cabelo dela estava todo preso para trás e amarrado em um rabo-de-cavalo, de forma que a sua testa ficava mais proeminente. Sua pele era alva como a neve, quase translúcida, e olhar para ela dava a sensação de que estava frio.

Após um aceno de cabeça que significava que estava tudo certo com a entrega do livro, a garota foi aventurar-se em meio às estantes. Ela ainda não havia decorado que tipos de publicações poderia encontrar em cada um dos corredores – era o seu primeiro ano no Campus, estudando biologia, e ela sentia medo. Passou anos estudando para finalmente ser aceita na universidade, após um longo processo de entrevistas e testes, e ninguém daquele lugar lhe parecia amigável. Todos os ambientes eram quietos demais, misteriosos demais, ocultos demais.

Percebeu que estava na seção de geografia e se deparou com inúmeros livros sobre a paisagem de Delsah’n e sua topografia. Achou um atlas recheado de mapas e outras informações cartográficas dos arredores de Lutcester e achou que seria uma boa ideia dar uma folheada enquanto estivesse ali, visto que ela não conhecia tanto do mundo lá fora.

Em sua caminhada para encontrar uma mesa, na parte de trás das estantes, a garota encontrou outras duas jovens sentadas lado a lado. Não as reconheceu, mas elas estavam conversando baixo e dando risadas tímidas. Ela sentou-se numa mesa à frente e as outras duas meninas levantaram a cabeça e a encararam com olhos arregalados. Foi então que ela percebeu que as duas eram gêmeas idênticas, que se levantaram prontamente largando o livro que folheavam e sumiram no meio das estantes com seus passos rápidos e silenciosos, como se ela fosse uma abominação.

Sem pensar muito, ela apenas deu de ombros e abriu o atlas, mas não conseguiu se concentrar depois do que aconteceu. Afinal, o que havia de errado com ela para aquelas duas se afastarem? Fechou o livro e apoiou o queixo com a mão direita, pensativa.

Logo à frente das mesas havia uma outra área com cabines de estudo, mais reservadas, e um pouco mais adiante uma outra porta dupla. Ela nunca tinha visto aquela outra porta, e definitivamente não era outra saída ou entrada da biblioteca.

Encarou a recém descoberta porta durante bons minutos enquanto ouvia o caminhar rápido das gêmeas perambulando entre as estantes, dando risadinhas como duas pequenas bobas da corte. Ela levantou, largou o livro sobre a mesa e caminhou até a porta.

Muitas coisas em Lutcester não são o que realmente aparentam ser, e muito daquilo que se espera, na realidade, é o contrário. Ela já tinha chegado a essa conclusão desde que entrou para o Campus. As aulas eram monótonas, os professores, em sua maioria, eram inflexíveis e os outros alunos pareciam não se incomodar com isso, muito menos as famílias privilegiadas da Cidade da Luz e os artistas circenses e boêmios da Cidade Iluminada.

Questionamentos estavam bombardeando sua mente enquanto ela chegava cada vez mais perto. Olhando em volta, na beira das estantes havia placas com os dizeres “Silêncio, por favor”, com uma ilustração minimalista da bibliotecária com o dedo indicador esticado na frente dos lábios. Seja lá quem tenha feito aquele desenho, era muito fiel à figura da bibliotecária, muito embora a garota nunca tenha sequer ouvido a voz dela.

Ao lado da porta estavam algumas pilhas de livros de aparência bem velha, que não pareciam estar organizados em qualquer ordem lógica. Caixas de papelão semi abertas exalavam um cheiro de mofo. Ela começou a chegar à conclusão de que por trás daquela porta ficavam os livros velhos, ou talvez livros tão antigos que precisariam ficar em um ambiente controlado para não apodrecer.

Ela se abaixou ao lado da pilha de livros e pegou o que estava em cima – “Ritos e Seitas do Deserto”. Não era muito grande, mas parecia interessante, místico. Não que ela acreditasse em tais coisas, pelo menos não até ver com seus próprios olhos.

Cética, abriu o livro, e uma nuvem de poeira voou em seu rosto, fazendo-a tossir e quase engasgar-se no próprio ar. O som do seu engasgar e repetidas tossidas naturalmente atraíram a atenção da bibliotecária e a garota começou a ouvir o som dos sapatos ecoando pelos corredores, se aproximando.

A adrenalina começou a fluir em suas veias – ela certamente estava mexendo em algo que não deveria. Em pânico, fechou o livro rapidamente e o colocou de forma desajeitada em cima da pilha. Não queria ser vista pela bibliotecária, e não teria exatamente por onde correr, afinal, seus passos fariam tanto barulho quanto os dela. Olhou para a porta e a abriu sem pensar. Foi até um pouco surpreendente a forma como foi fácil abri-la, em comparação com a porta de entrada.

Lá dentro, o cheiro de livro envelhecido era ainda mais forte, e a poeira do ambiente começou a lhe irritar o nariz e a garganta. Estava tudo absolutamente escuro, não conseguia enxergar nem as próprias mãos ou pés e iria espirrar e tossir lá dentro, inevitavelmente. Prendeu a respiração.

A porta se abriu, a bibliotecária entrou e a fechou. Encolhida em um canto, a garota conseguia apenas se guiar pelo som dos passos. Não resistiu e soltou um espirro tímido, logo gemendo em desespero porque seria descoberta.

Apesar do breu, seus olhos já estavam se acostumando com a escuridão, então ela pôde ver a silhueta da mulher, que se aproximou e se abaixou, ficando frente a frente com ela. Sentiu um ar gelado em seu rosto. A bibliotecária sorria, mas seu sorriso não era um sorriso normal. Era grande, largo, quase demoníaco, e agora ela entendia o motivo pelo qual a bibliotecária nunca havia dito uma palavra.

- Sshh. – colocando o dedo indicador em frente à boca escancarada.

A TORRE


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LUTCESTER Nº2 - A TORRE

O ar estava pesado em seu quarto, de tamanho moderado, em que havia uma cama, uma escrivaninha repleta de livros acadêmicos entre outros móveis comuns para o recinto de um jovem estudante universitário. Ele estava estudando avidamente quando começou a se sentir cansado, afinal, já eram três horas da madrugada e ele estava de pé havia muito tempo, empenhado em estudar o máximo para não deixar a desejar no exame, dali a algumas horas.

As pálpebras pesavam, os pés se arrastavam e era como se sua cabeça estivesse girando. Conseguiu se jogar em cima da cama, com a barriga para cima, e por mais que a exaustão o fizesse se sentir sonolento, ele simplesmente não entrava de fato no mundo dos sonhos. Era estranho.

A janela estava aberta e o vento noturno que lhe tocava a face era gelado, mas mesmo assim ele sentia calor. A vista dava diretamente para a Torre, onde estudantes de astronomia costumavam ir para observar o céu. Era uma construção imponente e um dos cartões postais da Cidade da Luz, lar para os estudantes e suas famílias. Ficou observando a estrutura durante um bom tempo.

Dormiu.

Sua avó lhe dizia, quando era menor, que dormir era uma grande viagem pelo inconsciente e que muitas vezes os sonhos poderiam ser premonições, ou avisos. Ele nunca se importou muito com o que ela dizia acerca desse assunto, não acreditava nessas coisas.

Até que ele estava no topo da torre. Sua visão estava embaçada e ele continuava se sentido pesado, como se tivesse que fazer o triplo do esforço para se locomover e respirar. Quando percebeu onde estava seus olhos se arregalaram e seu coração começou a disparar como se fosse saltar pela boca. Não fazia ideia de como havia parado ali e a adrenalina pulsando por suas veias o deixou agitado.

Em um instante um alto e forte barulho de bater de asas quase o ensurdeceu, e ao menos dez corvos passaram voando bem próximo ao seu rosto, indo para os céus e desaparecendo na escuridão. Ele começou a se sentir enjoado e a luz da cidade, lá embaixo, o cegava, mesmo que a maioria delas estivesse apagada, devido ao horário.

Se apoiou na grade logo à sua frente e tentou se acalmar, até que ouviu alguns passos atrás de si, mas não teve coragem de se virar. À medida que o som se aproximava, o seu corpo reagia em puro medo. Um calafrio que iniciou-se no fim de sua espinha e percorreu todo o corpo, as pernas trêmulas, uma dor atrás dos olhos e até as costelas reclamavam, doloridas.

A pessoa se apoiou na grade, ao seu lado. Vestia um sobretudo e um chapéu coco, e devido à falta de iluminação ali em cima não era possível identificar seu rosto. O jovem olhou de relance para o homem, que não havia dito nada até então, e cada vez mais ele sentia que iria vomitar ali mesmo.

- Uma vista e tanto, não acha? – a voz era profunda e um pouco arranhada.

Ele não conseguiu responder, era como se sua garganta estivesse bloqueada por uma pedra. Tamanha era a dor e desconforto que sentia, mas ele não conseguia afastar a vontade de virar-se e olhar diretamente para o homem.

- Poucas pessoas estão acordadas à esta hora, ainda mais aqui em cima, na Torre. – havia uma pena de corvo em seu ombro, a qual ele retirou – Gosto de vir aqui às vezes, observar os pássaros.

Um corvo pousou na grade, logo ao lado do rapaz, e o clima pesado só aumentava, a pressão que ele sentia era tanta que parecia que seus olhos iriam simplesmente explodir.

- Diga-me - e assim que o homem proferiu estas palavras, o rapaz virou-se e o fitou diretamente - você consegue ver além do que lhe é colocado diante dos olhos?

E ele viu.

O VESTIDO














LUTCESTER Nº1 - O VESTIDO

A sala de costura cheirava a uma mistura de mofo e tecido envelhecido, mas ainda assim era um lugar aconchegante. Era cedo, e ela havia chegado muito antes que todas as outras, empolgada para finalizar aquele vestido, aquele que seria usado por uma das bailarinas da Cidade Iluminada, no festival, mais tarde naquela noite.

Caminhou solene entre as mesas repletas de retalhos, linhas, agulhas, e, claro, as máquinas de costurar, então foi até o seu cantinho e lá estava ele – roxo com detalhes em dourado. Estava ficando maravilhoso, faltava apenas alguns retoques. Conferiu as medidas da bailarina em um papel largado que estava quase caindo no chão, e logo apoderou-se de uma agulha.

Tímidos, os raios de sol entravam pela janela e davam um ar mais quente para o recinto, e então ela costurou - passava a agulha pelo tecido com cuidado, mas sem dúvida alguma com toda a maestria de uma grande costureira. Tinha apenas dezesseis anos e era uma das melhores trabalhadoras do atelier, já havia feito vestidos e casacos para muitos eventos da cidade dos estudados, mas este era diferente, era um vestido para dança.

Sempre quis ser bailarina, mas nunca teve a oportunidade de entrar para uma escola de dança, ou mesmo de estudar qualquer outra coisa, assim era a vida nas Cidades Baixas. Seguia o legado de sua família e o pouco que ganhava ela juntava para pagar seus estudos no futuro, se é que conseguiria.

Os longos cabelos castanhos caíam sobre a vestimenta acomodada em seu colo, vez em quando tinha que tirar a franja da frente dos olhos para que não fizesse algo errado e estragasse sua produção, aquela que seria um tremendo espetáculo na praça central.

Quanto mais próximo de terminar o vestido, mais os seus olhos brilhavam e um sorriso se abria, não só porque estava lindo, mas também porque, curiosamente, as medidas da bailarina eram as mesmas que as dela – ela o vestiria e dançaria pela sala de costura.

Se olhou no espelho que havia próximo de sua mesa, completamente sujo, e, de fato, o corte lhe caiu perfeitamente, seus olhos começaram a ficar molhados e então imaginou uma melodia e começou a rodar. Nunca antes ela havia se sentido tão leve, livre e feliz, lágrimas escorriam de seus olhos fechados enquanto ela abria caminho pelas sacolas cheias de retalhos e esbarrava de leve nos pertences das outras costureiras do local. Seu cabelo rodava e girava junto com o vestido, seus braços acompanhando e os pés dando o ritmo, o direito fazendo a curva que impulsionava o seu quadril, trazendo o esquerdo que repetia o mesmo movimento. Nada antes em sua monótona vida foi tão sublime quanto aquele momento, e foi-se rodando, chegando ao fim do corredor e terminando a sua apresentação, realizada.

A sua alegria, no entanto, mesmo que contagiante a ponto de fazer com que ela sentisse um calor forte vindo de suas entranhas e chegando até a garganta, aquela felicidade avassaladora que até a deixou enjoada, foi momentânea. Despiu-se e colocou o vestido no cabide, branco, especialmente ornamentado com detalhes em dourado. Mais tarde todos seriam levados de uma só vez até o camarim das bailarinas, do outro lado do muro.

Anoiteceu. Vestiu-se da melhor forma que pôde, mesmo que ninguém importante fosse a ver, e correu até o terraço de uma casa próxima do muro, que felizmente era de um conhecido seu, assim poderia observar um pouco do grande evento de uma posição privilegiada para os padrões das Cidades Baixas.

As luzes da praça eram fortes e não deixavam sequer um ponto sem claridade, e lá estavam as vinte bailarinas, cada uma com vestidos de cores diferentes, e, atrás delas, a banda composta dos mais diversos instrumentos. A plateia se organizou ao redor da praça e algumas pessoas se acomodaram nas janelas de casas próximas.

Não era a primeira vez que ela assistia a um espetáculo de dança na Cidade Iluminada, mas um vestido feito por ela, era inédito. A música começou e as bailarinas avançaram, sincronizadas, fazendo movimentos suaves e coordenados, a parte rodada dos vestidos levantando, seguindo o ritmo até o grande momento em que todas começaram a rodar. Seus olhos, mais uma vez se tornaram úmidos, mas ela sorria e mimicava os movimentos, rodando sem sair do lugar. Ela queria estar ali, mas testemunhar o seu vestido ser protagonista daquele lindo espetáculo lhe bastava, por enquanto. Um dia ela chegaria lá.

Um dia.